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Capítulo 6 - Plano Fantástico


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Finalmente...

Novamente...

Eu sou eu.


O carro correu mais rápido do que os últimos dias, espremendo-se para caber entre poucos momentos. A vida é sempre o capítulo seguinte. Estamos aqui e, em instantes, não estamos mais.

José está na rua, andando calmamente. O seu tempo é seu. O carro, não é mais seu.

- Ali! Desceu um passageiro. Vamos aproveitar aquele motorista - grita um homem, ouve-se pés apressados atrás de José.

- Não se engane! - José vira e interrompe o casal apressado.

O homem de meia idade e sua mulher com o cabelo preso, pele levemente escura, com a certeza e pressa de alguém que deixou uma panela no fogo. Eles param, desanimam e encaram José. O carro espera. A dúvida não.

- Todos nós somos passageiros - José diz calmamente.

- Ah vá à merda! - o homem resmunga e entra com sua esposa no carro.

Ele fecha a porta e ouve-se o pino da trava. O carro arranca em velocidade e vai embora, abafando os gritos do casal assustado.

- Encontrem o seu destino - diz José enquanto caminha - Onde quer que ele esteja.


Voltamos para a estrada.


Sorriso no canto do rosto. Ele caminha em direção a um homem deitado e outro meditando ao seu lado.

- Solte! Deixe ir - ordena.

Lentamente, a posição de meditação vai se soltando, os braços fraquejam e o homem se afasta daquele corpo. Ele se levanta e encara José. Tenta falar, mas não consegue dizer nada. Tenta ver, mas não enxerga nada.

- Sim eu sou ele. E nós… Somos nós.

Ali em pé está o José do passado. O José antes do casamento. O perdido antes de se perder. Uma peça solta do mundo enquanto observa as engrenagens brigarem entre si.

O mendigo olha assustado, tenta falar. Gagueja. Não sai nada. Só quer sair dali e correr o mais rápido que puder. Se suas palavras não saem, talvez ele saia. Por que dois homens iguais estão se olhando? Não faz a mínima ideia. Nem tenta entender.

- Faça o que você faria e termine o que te impedi de começar.

O mendigo continua sem entender. Olha de um para o outro com seus olhos arregalados.

- Agrida meu rosto. Mas poupe o meu dente dessa vez.

Na dúvida entre bater e fugir, ele escolhe correr. Foge. Dessa vez não terá o prato da vingança, terá que vasculhar outra opção no cardápio.

- A nossa força sempre foi a nossa fraqueza - o protagonista caminha em direção ao seu eu do passado - Mas temos um problema...


Temos?


- Eu rompi com o espaço-tempo e interferi na minha própria jornada… Como devemos proceder?


Devemos? Tem certeza?

Já fiz a minha parte na história.

Faça a sua.


José se aproxima de seu corpo imóvel do passado, dá um tapa no seu peito empurrando-o para trás… o corpo cai como se estivesse sem vida, sua cor em um azul vazio assume o frio da madrugada. Nitidamente morto. É o momento de se desprender de possibilidades e encarar essa morte-fantasia como uma realidade fora dos livros. É o seu elixir antes da hora. Bebe e segue. Toma e retoma. Apóstolo do seu próprio destino.

Ele observa seu outro eu sumir, esfarelado entre brilho e rugas, pedaços de sua pele cintilam e voam. Sabe o que está acontecendo... Enterrando seus medos e fraquezas no desaparecimento. Fugiu de um ritual para cair em outro. Ele que sempre tropeça, mas antes tinha uma parede onde se escorar. Agora apoia-se em seu próprio peso.


Sabe o que está acontecendo né?


- Criamos outra morte… Eu que rompi com o espaço-tempo… Agora tenho o relógio do tempo… Mas… Cadê o pardal. - José olha em volta.


Está congelado em seu ritual eterno.

Em um casamento que não começou e que nunca terminará.

Está preso em um momento que virou lembrança.

Cercado por uma imaginação que ele mesmo se iludiu em construir.

Está em seu próprio fim.


- É uma pena.


Sim. Mas foi ele quem escolheu.


- É uma pena ali no chão ao meu lado… - o viajante abaixa, pega ela e guarda no bolso - Como tudo que não serve, um dia servirá.

José olha para cima, enfia a mão em seus bolsos da calça e segue.

Seus olhos brilham, sua pupila incandesce. O céu começa a clarear e o Sol sobe rapidamente para iluminar o dia. As horas mudaram seu próprio período. As que eram, não são mais. Amanhece naquela rua descolorida.

Mas uma dúvida perdura entre seus poucos fios de cabelo. Poros, suor e alguns fios.

Para onde ir? Se não sabe para onde vai. Se não sabe mesmo quem é. Catedral sem funeral. Um degrau fora da escada. Insolente viajante, confiante em seus próprios sentidos. Se preserve e siga em frente… E não deixe a rotina te prender de novo.

Ela é muito sedutora.

Fio arrebentado.

- Chegou a hora… - silêncio também arrebentado, José conversa consigo mesmo - Eu vou meditar no campo… fora da cidade.


Ainda é cedo. Você não está preparado para usá-lo.


- É o momento. Me solte, me largue e me solte.


Não deve invocar o que não pode controlar.


- Essa viagem me mudou e eu me encontrei novamente com o meu propósito. Olha ali naquelas janelas. Você vê?


Não.


- Ele morava ali…


Quem?


- O meu propósito… Vi pelas fotos do Instagram… A verdade é que não estamos preparados… - silêncio e frio - O reflexo é só um reflexo. Mas ele também perpetua o inverso.

Caminha longe.

Vai embora e distante, mudado pela dor da lembrança.

Viúvo de um casamento que não aconteceu.

Culpado por não ter feito nada e, ainda assim, dói mesmo a culpa.

Despido sem casaco e sem futuro.

Sem saber o que fazer.

Ele vai embora.

O caminho para a meditação.

O que ele acredita ser o início do fim.

É arriscado. Ele sabe. Ele sente.

Mas todos os dias, ele sofre sem saber o que poderá acontecer.

Vai para o futuro antes que o futuro venha até ele.

Ele que não chega em instantes. Ele que não vai sem levar tudo embora.

O temível destino.

A cortina da nossa janela. Abra e veja. Feche e espere.

Encare ou não.

Ele sempre estará ali.

Tira o cadeado do medo e sente os raios de sol.

Todo risco, é apenas um risco.


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