Capítulo 5 - Plano Fantástico
- Loris Reggiani

- 9 de jun. de 2020
- 6 min de leitura

- Primeiro me diga como sair daqui… - José fala em tom calmo, esconde todo o seu desespero. Grita em seus pensamentos.
Tira sua tiara cheia de brilhantes e joga para longe… Ela estava colada ao seu cabelo, sente uma dor profunda, mas esconde. Esconde também a lágrima. Não pode demonstrar fraqueza. Quer gritar de novo em seus pensamentos.
- Me devolve o relógio e eu te conto. - a morte estica o braço, onde deveria ter uma mão não tem nada. Ela parece não ter corpo. Barganha cruel.
- Voz que está em minha cabeça, volte aqui… Me ajude… Eu preciso sair dessa loucura e voltar para o banco.
Caramba… Agora entendo… Agora tudo faz sentido.
- Ou você me tira daqui ou você me deixa casar. A escolha é sua!
O ritual do Pardal consistia em apagar a sua memória e fazer você acreditar que a realidade dele era a sua realidade. Para isso ele simulou vários acontecimentos na sua cabeça e fez você acreditar que vocês se amavam e iriam se casar.
- Olha se você não for falar nada que me ajude, você não me atrapalhe. - Completamente inconformado ele continua - Simulou nada! - José fala balançando a cabeça enquanto olha para a morte. - Do jeito que você fala até parece que eu sou “a outra”.
A morte não olha para ele pois não tem rosto, apenas continua imóvel.
Se ela está mesmo ali, só ela saberia responder.
- Tem uma voz, dentro da minha cabeça… Falando que o Pardal não me ama… - José se irrita e tenta explicar, a morte não precisa achar que ele é louco, apenas ele achando já é suficiente - Recalcada! Mal-amada! - José começa a gritar - Impura!
Provavelmente ele fez você se esquecer também do acidente.
- Acidente? Que acidente?? ME SOLTA, ME LARGA E ME… - José fica petrificado.
Ouve-se uma forte freada de pneu. Ele fecha os olhos.
Tudo fica escuro.
José espera.
A morte não fala mais nada.
Lentamente ele abre os olhos.
Tenta tatear a morte ao seu lado. Não toca nada.
Está sozinho.
Está cego também. Ou sempre esteve e apenas agora percebeu. Eles roubam nossos planos e devolvem em memórias acinzentadas. Cinzas de um corpo que esmoreceu.
- AAAH! - José grita. Ouve seu grito e grita de novo - AAAAAH! AAAAAAAAHHHH!
José está na frente do espelho e com um pouco mais de cabelo. O mundo dos pardais sumiu. Ele está no banheiro, se arrumando para sair. A torneira está aberta, a água continua escorrendo. Ele apagou por alguns momentos.
Camisa social abotoada até o pescoço... Pega o perfume, mas antes de borrifar, devolve ele na pia, fecha a torneira e sai assustado. Tem medo de voltar a pensar em um mundo louco de pardais. Sai correndo, pega a bolsa, põe no ombro. Fecha a porta. Tranca a porta. Desce as escadas do prédio correndo. Trancou a porta? Pergunta. Responde. Desce mais rápido.
- Bom dia querido José! - um porteiro levemente acima do peso acena para ele com um pão de queijo na mão enquanto a cadeira giratória em que está sentado acompanha a passagem de José.
Mas ele não responde, apenas continua correndo.
Pega o celular. Abre o Uber. Escolhe trabalho. Clica em iniciar, seleciona forma de pagamento, clica em OK. Não se lembra mais o que fez. Só quer ir embora. Guarda o celular no bolso. Esquece a placa do carro. Pega o celular de novo. Desbloqueia e olha.
Sem respirar, rápido.
Vai que tudo muda de novo.
Olha, vê um ônibus vindo.
Sem ônibus hoje.
Meu Deus, o celular! Rápido José.
Será que já chegou?
- Nossa parece que…
Um Ford KA preto estaciona. José se aproxima da porta do passageiro ao lado do motorista.
- Banco de trás, por favor. - um senhor responde seco.
José senta-se atrás. Espera alguns segundos, o carro continua parado.
- Vamos! - diz impaciente.
- Para onde vamos? - o motorista pergunta, sem olhar para trás.
- Para o meu trabalho… Você não tem o endereço?
- Tenho… O que eu quero dizer é… Para onde você está indo?
Tudo gira de ponta cabeça e volta ao seu lugar.
Frio na barriga. Sem ar nos pulmões. José perdeu tudo o que não tinha. A incerteza que o segurava em uma linha contínua. A narrativa que parecia vida. O conforto de ter o mesmo dia que ontem. O seriado infinito.
Tudo desmoronou… com uma maldita pergunta.
- Não parou né? - José pergunta insatisfeito. Desanimado.
- Não.
- Continua acontecendo?
- Sim.
- Então, eu casei com o Pardal… E devolvi o relógio para a morte.
- Também não.
- Eu… Eu tive filhos com ele?
- ...
- Meu Deus eu sou uma noiva fugitiva e ladra ainda?!
O motorista desce do carro.
José assustado desce também. Sente uma chuva caindo sobre seu ombro, molhando os cabelos. Pensa se é de verdade. Os cabelos talvez fossem. Num mundo de fantoches, tudo que é natural parece mentira. Porém, ele começa aos poucos a perceber que não está mais em casa. O carro andou parado.
Está em frente ao banco que trabalhava.
Motorista gentil. O futuro que é traiçoeiro.
José caminha pela frente do carro, os faróis ligados iluminam os pingos que cruzavam a frente do carro.
Os pingos ficam vermelhos. Uma enorme poça de sangue estava ali. O passageiro escuta seus pés pisando nela.
À frente do carro está o corpo de José, estirado.
Foi atropelado? Mas, sem barulho e sem impacto?
- O que está acontecendo? - José corre e chacoalha o motorista, enfim olha nos olhos dele.
São os mesmos olhos que os seus. É o seu mesmo cabelo. Os lábios também. Seu mesmo rosto.
Ele também é José.
José, se você conseguir correr, volte a correr.
Mas ele não sente as pernas.
- Você não está aceitando o seu destino porque está confuso e porque tem medo. - diz o motorista.
José continua parado.
Suas lembranças começam a rodar como fotos em uma tela de cinema.
Ele se lembra do acidente e ele também se lembra dos dias antes do acidente. Ele se lembra dos dias depois do acidente.
Ele solta a bolsa no chão. Uma bolsa que pesava anos. Uma bolsa que carregava o passado como se pudesse dar um sentido para ele. Uma bolsa dessas que a gente ganha mesmo que não queira usar.
- Você quer parar porque tem medo de seguir em frente. Mas você tem três caminhos! - o motorista começa a gritar, a chuva fica mais forte - Um… Finge que nada disso aconteceu, acorda de novo no hospital e continua sua vida como sempre viveu...
José começa a sentir seu pulmão enchendo e esvaziando.
- Dois… Volta para antes do acidente, escapa do carro e não sofre nada disso.
Ele levanta o rosto e encara o motorista. Sua outra versão não diz nada.
- E o terceiro? - José pergunta.
- Devolve o meu relógio - sai uma pessoa de capuz com o braço estendido procurando José entre as pessoas que olhavam o acidente.
Sem mãos! É ela de novo! Como pode? Ela não desiste.
O motorista olha com desdém.
- O terceiro é… seguir o seu caminho - o motorista vira as costas e vai embora, sumindo no meio da chuva.
Águas que caem dos céus e afogam mais do que refrescam.
José não sabe o que fazer. Não sabe para onde ir. Não sabe de nada.
Também não sabe o que não fazer.
Como sempre soube.
Perdido em um escritório sem mesa.
Procurando um lugar para se encontrar.
Nada é seu.
Nem ele mesmo.
Respira fundo.
Não sente o ar.
Respira mais fundo.
Ainda não sente.
Olha para cima… Trovões percorrem as nuvens.
- Entendi… Por mais que pareça que eu não tenha escolha… Essa é apenas mais uma escolha.
Uma frase que ele poderia ter bordado na toalha de rosto do banheiro.
José entra no carro, no banco de trás, completamente ensopado e fecha a porta.
- Vamos em frente.
O carro está sem motorista, mesmo sai em arrancada com tanta velocidade que José sente seu corpo pressionado contra o banco. As pessoas desaparecem.
A chuva não desaparece.
O tempo passa.
O carro não para.
José não vê nada lá fora. Não sabe onde vai.
Lá fora também não vê nada o que tem dentro.
O freio brusco anuncia o fim do trajeto.
Ou seria apenas outro começo?
José desce do carro e fecha a porta.











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