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Capítulo 5 - Plano Fantástico


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- Primeiro me diga como sair daqui… - José fala em tom calmo, esconde todo o seu desespero. Grita em seus pensamentos.

Tira sua tiara cheia de brilhantes e joga para longe… Ela estava colada ao seu cabelo, sente uma dor profunda, mas esconde. Esconde também a lágrima. Não pode demonstrar fraqueza. Quer gritar de novo em seus pensamentos.

- Me devolve o relógio e eu te conto. - a morte estica o braço, onde deveria ter uma mão não tem nada. Ela parece não ter corpo. Barganha cruel.

- Voz que está em minha cabeça, volte aqui… Me ajude… Eu preciso sair dessa loucura e voltar para o banco.


Caramba… Agora entendo… Agora tudo faz sentido.


- Ou você me tira daqui ou você me deixa casar. A escolha é sua!


O ritual do Pardal consistia em apagar a sua memória e fazer você acreditar que a realidade dele era a sua realidade. Para isso ele simulou vários acontecimentos na sua cabeça e fez você acreditar que vocês se amavam e iriam se casar.


- Olha se você não for falar nada que me ajude, você não me atrapalhe. - Completamente inconformado ele continua - Simulou nada! - José fala balançando a cabeça enquanto olha para a morte. - Do jeito que você fala até parece que eu sou “a outra”.

A morte não olha para ele pois não tem rosto, apenas continua imóvel.

Se ela está mesmo ali, só ela saberia responder.

- Tem uma voz, dentro da minha cabeça… Falando que o Pardal não me ama… - José se irrita e tenta explicar, a morte não precisa achar que ele é louco, apenas ele achando já é suficiente - Recalcada! Mal-amada! - José começa a gritar - Impura!


Provavelmente ele fez você se esquecer também do acidente.


- Acidente? Que acidente?? ME SOLTA, ME LARGA E ME… - José fica petrificado.

Ouve-se uma forte freada de pneu. Ele fecha os olhos.

Tudo fica escuro.

José espera.

A morte não fala mais nada.

Lentamente ele abre os olhos.

Tenta tatear a morte ao seu lado. Não toca nada.

Está sozinho.

Está cego também. Ou sempre esteve e apenas agora percebeu. Eles roubam nossos planos e devolvem em memórias acinzentadas. Cinzas de um corpo que esmoreceu.

- AAAH! - José grita. Ouve seu grito e grita de novo - AAAAAH! AAAAAAAAHHHH!

José está na frente do espelho e com um pouco mais de cabelo. O mundo dos pardais sumiu. Ele está no banheiro, se arrumando para sair. A torneira está aberta, a água continua escorrendo. Ele apagou por alguns momentos.

Camisa social abotoada até o pescoço... Pega o perfume, mas antes de borrifar, devolve ele na pia, fecha a torneira e sai assustado. Tem medo de voltar a pensar em um mundo louco de pardais. Sai correndo, pega a bolsa, põe no ombro. Fecha a porta. Tranca a porta. Desce as escadas do prédio correndo. Trancou a porta? Pergunta. Responde. Desce mais rápido.

- Bom dia querido José! - um porteiro levemente acima do peso acena para ele com um pão de queijo na mão enquanto a cadeira giratória em que está sentado acompanha a passagem de José.

Mas ele não responde, apenas continua correndo.

Pega o celular. Abre o Uber. Escolhe trabalho. Clica em iniciar, seleciona forma de pagamento, clica em OK. Não se lembra mais o que fez. Só quer ir embora. Guarda o celular no bolso. Esquece a placa do carro. Pega o celular de novo. Desbloqueia e olha.

Sem respirar, rápido.

Vai que tudo muda de novo.

Olha, vê um ônibus vindo.

Sem ônibus hoje.

Meu Deus, o celular! Rápido José.

Será que já chegou?

- Nossa parece que…

Um Ford KA preto estaciona. José se aproxima da porta do passageiro ao lado do motorista.

- Banco de trás, por favor. - um senhor responde seco.

José senta-se atrás. Espera alguns segundos, o carro continua parado.

- Vamos! - diz impaciente.

- Para onde vamos? - o motorista pergunta, sem olhar para trás.

- Para o meu trabalho… Você não tem o endereço?

- Tenho… O que eu quero dizer é… Para onde você está indo?

Tudo gira de ponta cabeça e volta ao seu lugar.

Frio na barriga. Sem ar nos pulmões. José perdeu tudo o que não tinha. A incerteza que o segurava em uma linha contínua. A narrativa que parecia vida. O conforto de ter o mesmo dia que ontem. O seriado infinito.

Tudo desmoronou… com uma maldita pergunta.

- Não parou né? - José pergunta insatisfeito. Desanimado.

- Não.

- Continua acontecendo?

- Sim.

- Então, eu casei com o Pardal… E devolvi o relógio para a morte.

- Também não.

- Eu… Eu tive filhos com ele?

- ...

- Meu Deus eu sou uma noiva fugitiva e ladra ainda?!

O motorista desce do carro.

José assustado desce também. Sente uma chuva caindo sobre seu ombro, molhando os cabelos. Pensa se é de verdade. Os cabelos talvez fossem. Num mundo de fantoches, tudo que é natural parece mentira. Porém, ele começa aos poucos a perceber que não está mais em casa. O carro andou parado.

Está em frente ao banco que trabalhava.

Motorista gentil. O futuro que é traiçoeiro.

José caminha pela frente do carro, os faróis ligados iluminam os pingos que cruzavam a frente do carro.

Os pingos ficam vermelhos. Uma enorme poça de sangue estava ali. O passageiro escuta seus pés pisando nela.

À frente do carro está o corpo de José, estirado.

Foi atropelado? Mas, sem barulho e sem impacto?

- O que está acontecendo? - José corre e chacoalha o motorista, enfim olha nos olhos dele.

São os mesmos olhos que os seus. É o seu mesmo cabelo. Os lábios também. Seu mesmo rosto.

Ele também é José.

José, se você conseguir correr, volte a correr.

Mas ele não sente as pernas.

- Você não está aceitando o seu destino porque está confuso e porque tem medo. - diz o motorista.

José continua parado.

Suas lembranças começam a rodar como fotos em uma tela de cinema.

Ele se lembra do acidente e ele também se lembra dos dias antes do acidente. Ele se lembra dos dias depois do acidente.

Ele solta a bolsa no chão. Uma bolsa que pesava anos. Uma bolsa que carregava o passado como se pudesse dar um sentido para ele. Uma bolsa dessas que a gente ganha mesmo que não queira usar.

- Você quer parar porque tem medo de seguir em frente. Mas você tem três caminhos! - o motorista começa a gritar, a chuva fica mais forte - Um… Finge que nada disso aconteceu, acorda de novo no hospital e continua sua vida como sempre viveu...

José começa a sentir seu pulmão enchendo e esvaziando.

- Dois… Volta para antes do acidente, escapa do carro e não sofre nada disso.

Ele levanta o rosto e encara o motorista. Sua outra versão não diz nada.

- E o terceiro? - José pergunta.

- Devolve o meu relógio - sai uma pessoa de capuz com o braço estendido procurando José entre as pessoas que olhavam o acidente.

Sem mãos! É ela de novo! Como pode? Ela não desiste.

O motorista olha com desdém.

- O terceiro é… seguir o seu caminho - o motorista vira as costas e vai embora, sumindo no meio da chuva.

Águas que caem dos céus e afogam mais do que refrescam.

José não sabe o que fazer. Não sabe para onde ir. Não sabe de nada.

Também não sabe o que não fazer.

Como sempre soube.

Perdido em um escritório sem mesa.

Procurando um lugar para se encontrar.

Nada é seu.

Nem ele mesmo.

Respira fundo.

Não sente o ar.

Respira mais fundo.

Ainda não sente.

Olha para cima… Trovões percorrem as nuvens.

- Entendi… Por mais que pareça que eu não tenha escolha… Essa é apenas mais uma escolha.

Uma frase que ele poderia ter bordado na toalha de rosto do banheiro.

José entra no carro, no banco de trás, completamente ensopado e fecha a porta.

- Vamos em frente.

O carro está sem motorista, mesmo sai em arrancada com tanta velocidade que José sente seu corpo pressionado contra o banco. As pessoas desaparecem.

A chuva não desaparece.

O tempo passa.

O carro não para.

José não vê nada lá fora. Não sabe onde vai.

Lá fora também não vê nada o que tem dentro.

O freio brusco anuncia o fim do trajeto.

Ou seria apenas outro começo?

José desce do carro e fecha a porta.


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