Capítulo 3 - Plano Fantástico
- Loris Reggiani
- 26 de mai. de 2020
- 8 min de leitura

Os dentes são importantes para a nossa sobrevivência. Com eles podemos triturar, cortar, amassar e deglutir os alimentos. Ainda que benéfico, um fato é incontestável. Eles sempre estarão entre nós e os alimentos. Como um voyeur necessário… Peça importante da narrativa.
Assim é o instinto humano. Ele nos torna aptos à sobrevivência, mas… Em alguns momentos também nos torna inaptos.
Primitivos.
É a pele fora da alma.
É o casco fora da árvore.
Ainda assim, é melhor ter o instinto do que não ter.
Assim como os dentes… É melhor tê-los, do que não tê-los.
E esse dente eu não tenho mais.
Fruto de um ato cavernal.
Fruto de um ato bruticida.
Um fruto que não poderei comer mais.
Pois não o tenho.
O dente, não o fruto.
Também não tenho o fruto.
Perdoe-se José.
Você tenta ajudar… Mas, às vezes, a não-ajuda é a melhor ajuda.
Um pensamento ocupa a sua cabeça... Existe sempre um caminho para as coisas… E esse foi o caminho dele. A dor ensina, mas dói. Caminho errado. Que pena.
E continua doendo.
José tenta entender como tudo começou. Como chegou aonde está.
Volta no tempo... Perdido…
Mastiga suas memórias.
Porém, mastiga de um lado só. O que ainda tem todos os dentes...
Primeiro… Ele escapou do hospital.
Respiração ofegante. Enfermeira gritando. Porta arrebentada com a cabeça. Lembranças de como foi parar lá. OK.
“Dói pra caralho”
Lembra das palavras saindo de sua boca.
Um tolo caminhando em ruas vazias.
O silêncio é a nova música. Deram play e colocaram para repetir.
Um vírus se espalhou pelo mundo. COVID? Nome estranho! Tanto quanto aquele enfermo moribundo perdido.
José irá pegá-lo? Mas se pegar... Irá abraçá-lo e tentar tirar a raiva dele. Má ideia José. Continue caminhando, transeunte do paraíso. Esquece o tal do Covid. O vírus irá te corromper. Sua pureza está acima das doenças. Não pare José.
- As pessoas nunca vão te entender - diz para si mesmo - Porque para te entender elas precisam saber que não te conhecem… E isso é importante para poder te entender.
Frio na bunda. Reflexão pesada. O velho parou para entender o que disse. Nem ele se entende. Não se pode culpá-lo. É muito para alguém que sofreu um acidente.
Caminha perdido enquanto o tempo ameaça escurecer. As ruas desertas, barulhos de carro ao longe.
Silêncio marginal.
José está confuso.
Um homem se aproxima dele, com jaqueta jeans aberta e uma camiseta vermelha. Uma máscara branca de proteção no rosto. Normal para nós. Não para José.
Malditos enfermeiros disfarçados.
É hora de matá-los...
A morte não tem hora… Eu removi o relógio dela.
José responde para si mesmo. Uma luta interna acontece. O oponente de si mesmo. Onde as pessoas só veem um moribundo transitando em direção ao seu fim, ali dentro existe uma guerra… E ela afasta o fim do homem.
- Ei! Está tudo bem com o senhor? - o cidadão pergunta gentilmente.
- Espere, pois eu estou tendo uma conversa comigo! - José faz sinal com a mão para o homem parar, fecha os olhos e começa a gesticular como se defendesse um ponto de vista. É um socrático suburbano.
Nem todos são inimigos. Você não pode falar assim com eles. Eu vou abrir os olhos e você me dará o direito de tratá-lo com parcimônia.
Silêncio.
Ele abre os olhos.
- Sim diga! Mas não vou te seguir. - José diz em tom calmo, porém decidido.
- Ainda bem que o senhor não vai me seguir - respira fundo.
- Essa não! Vocês que vão me seguir! - a voz desesperada sobe em altura, o senhor fica em posição de luta e procura por pessoas escondidas - Cadê os outros? Diga e eu pouparei a sua vida...
Se acalme José.
Ele novamente abre os olhos. Calmo.
- Eu não vou com vocês - José já estava de pé, sem posição de luta e falando tranquilamente. - Desculpe. Não desculpe. Vá se ferrar!
Tudo muda rápido. Aquele homem de máscara não entende mais nada.
- Cara cuidado, põe uma máscara - o homem vira as costas e vai embora.
- Essa máscara é apenas mais uma que a humanidade usa! - José grita.
Punho em riste.
O homem continua indo embora.
- Meu Deus…. Ele está tentando me levar para uma armadilha. - pupilas dilatadas e pés prontos para fugir.
José fica novamente em posição de luta.
Observa cada detalhe à sua volta.
Vira as costas e sai correndo na direção contrária.
Fuja como se nunca tivesse fugido!
Tão faminto que já deixou de sentir a fome
Ele segue seu caminho.
O dia escureceu. É de noite. A referência das horas não é mais uma de suas habilidades. O relógio que ele roubou da morte, o tempo também roubou dele. Parceiros de um crime.
Não sente falta.
Você só encontra o que procura quando você deixa de procurar.
A gente não controla o tempo.
Nunca iremos controlá-lo.
Nem a morte, agora ela não tem o relógio.
José ri.
Seu estômago ronca.
Ele para de rir.
Olha para cima, um pardal gigante sobrevoa os prédios.
É hora de fingir que você não viu nada.
Ignora.
Está em um ambiente de centro de cidade, abandonado pelo governo e pelos impostos. As ruas sujas, as portas fechadas, poucas pessoas e um tom sem cor ocupa a vista.
Ele finge de novo que não viu.
Mas sabe que viu mais uma vez.
- Não me ignore! - berra o pardal em um novo rasante.
Uma pena azul-marinho, do tamanho de uma caneta, cai sobre seu ombro.
Os prédios tremem, ouve-se vidros quebrando e pessoas gritando. Roupas do varal voam.
O senhor fecha os olhos. Tem o poder sobre sua mente. Por enquanto tem.
Abre os olhos de novo e olha para cima.
Nenhum pardal.
Da forma que desapareceu, você suma e não volte mais.
E me dê licença!
- Quem? Eu? - a voz do pardal ecoa.
José corre, desengonçado. Assustado. Alucinado.
- Maldito! - resmunga enquanto corre.
Corre de tropeçar. Mais do que seus pés possam acompanhar.
Ele vê um lugar aberto e continua correndo. Precisa de informação. Todos nós precisamos. Mas José precisa mais ainda!
- Por favor… Você… - José fica petrificado.
Uma mulher de costas, vira em direção à ele.
- Pois não?
IMPOSSÍVEL! COMO PODE?
- Realmente, vocês foram longe demais… - José dá um passo para trás, hesitante. O coração ameaça falhar Não acredita no que vê.
- Posso ajudá-lo? - uma mulher com máscara de proteção e roupa branca caminha na direção dele.
- Eu invoco o Pardal dos Céus. - José fala como se fizesse um ritual elevando a voz.
Ouve-se um raio ecoando.
- Quem? Eu? - o pardal gigante responde em tom alto e desafiador.
- Maldito. Você não! Volte!
Um homem se aproximava para entrar na farmácia, mas recua com medo de José. Ele tampa os olhos do filho e sai em velocidade. Lembra que estamos em época de Covid. Ele higieniza as mãos com álcool gel e passa no rosto do garoto.
- Ai meus olhos! - a criança grita.
Ele não ouve. Apenas continua correndo.
José continua ali parado, refletindo. O Pardal o observa apoiado em um prédio distante.
Uma risada maléfica para aumentar a tensão.
Ecos para deixar tudo mais grave.
Esses malditos isolaram a cidade só para me pegar… Eu realmente não queria fazer isso.
- Senhor? Está tudo bem? - a enfermeira pergunta assustada.
José abre os olhos, suas pupilas pegam fogo. Ele estica a mão em direção à mulher. Seu braço treme.
Sua piedade foi embora.
- Está pesada…
- Como ousa? - a enfermeira fica irritada.
- A porta está pesada, mas vou fechá-la.
De repente a porta bate com muita força.
Estremece o mundo.
Fuja José!
Ele fecha os olhos e vira as costas. Caminha. Se afasta.
Sem licença dessa vez.
Isso deve impedir aquela enfermeira insolente.
José se afasta.
Atrás dele cai um letreiro escrito “Farmácia”.
Ele não vê. Só vê a si mesmo.
O Pardal gigante e louco apenas observa.
Ri em silêncio. Se mistura com os prédios e janelas.
- Senhor, você está bem?
Ele continua de olhos fechados.
Se eu ignorar, some.
Se eu ver, eu vivo.
- Você precisa de uma amb… - a voz da enfermeira percorre a sua mente.
José não deixa ela terminar a frase. Aperta o passo. Talvez ela esteja te seguindo. Vai ter que correr muito para prendê-lo.
Sai sem destino.
Vira a esquina.
De olhos fechados.
Continua correndo. Não para, vira outra esquina.
Fica andando em círculos no quarteirão.
Cansa.
Senta.
Descansa.
Fôlego recuperado.
Levanta.
Corre de novo.
De repente sente algo muito pesado bater em seus pés e vai de cara ao chão. Uma dor imensa de ralado começa a queimar seu nariz.
Eles te pegaram, agora terá de se render.
Tanto esforço em vão.
Com medo José abre os olhos, trêmulo… Se afastando de costas na calçada, olhando a toda a sua volta com medo. Pega uma garrafa pet para se defender. Sente cheiro de urina. Joga ela longe.
Alguém dormia ali na sua frente. Um mendigo. O que derrubara José era apenas um mendigo.
Despido pela vida. Aguardando a morte.
Ainda bem que eu roubei o relógio dela.
José se aproxima. A dança dos perdidos.
Sim é o momento de se fortalecer e em breve voltar para a guerra.
O plano está na sua cabeça. Falta pintar no mapa.
- Nós dois, fomos enfraquecidos e manipulados pelo sistema. Mas eu conheço uma técnica que poderá nos tornar muito mais fortes.
O mendigo continua dormindo. Um leve ronco faz companhia a José.
Ele respira fundo. Sabe de tudo. Já sabe de tudo.
Não é inocente. É perspicaz.
Era a última opção que restava. Mas ele não pode mais fugir, precisa ficar forte e vencer o mal.
Peguem essa lágrima de alguém que sabe que já venceu.
Ponha ela no cálice ou na garrafa pet que arremessei a vocês.
Sorriso no canto do rosto… Finalmente a soberba que o velho escondia.
José se ajoelha próximo ao mendigo, com dificuldade. Seus braços tremem. O mendigo continua dormindo, de barriga para cima. Parece estar em outro palno. Papelão e um pano rasgado são seus cobertores. Um capuz que achou no lixo. Meia em apenas um dos pés. Buracos por toda a roupa.
- Prepare-se para prevalecer sobre o mal - José engrossa a voz. - Vem aí a aurora!
Com dificuldade ele se senta em frente ao mendigo e fica em posição de meditação.
- Essa é uma técnica especial, mas muito avançada. Nós vamos realizar uma mitose e nos uniremos por toda a eternidade.
José fecha os olhos para se concentrar e levemente começa a levitar do chão.
O mendigo não percebe que é envolvido por uma energia muito poderosa, está em sono profundo. Também levita do chão.
- Nós vencemos. Obrigado.
Olhos fechados. O barco navega para o submundo do inconsciente.
O sono se aproxima. Mas não é qualquer sono.
Esse senhores, é o sono profundo da vitória.
Nosso corpo se tornará um só.
Nossa mente se tornará uma só.
Tenha paciência amigo.
Sairemos mais fortes daqui.
Juntos podemos vencer.
Respire o ar que eu expiro.
Movimente a sua caixa torácica junto com a minha.
É uma dança de titãs.
É o baque do silêncio.
É o meu dente.
Sim o molar que mastiga a vida e as incertezas.
Pera… É realmente o meu dente?
O que aconteceu?
José acorda com o nariz sangrando.
Uma dor muito forte no rosto.
Ele dormiu no meio do ritual e o mendigo acordou enfurecido.
A vista embaçada e o ouvido zumbindo como se uma granada explodira bem ao seu lado. Não entende o que o mendigo fala e os sinais que faz com as mãos.
De fato, há muito ódio ali.
Que bom que a fusão falhou.
Não queria todo esse ódio para si.
Mas, o jogo virou.
E agora?
O ritual foi interrompido por um mendigo que despertou enfurecido.
Interesses levianos se sobrepujaram contra um ritual de fusão para o nascimento de um novo guerreiro.
José descubra outro caminho.
Mas antes, volte seu dente no lugar.
- Deu errado, né idiota? - o Pardal gigante ri.
José acorda novamente.
- Está quase completo. - o Pardal fala tão alto que parece estar colado no ouvido de José.
Pera. Não!
Olhos arregalados. O velho sabe o que está acontecendo.
Assustado, ele tenta se levantar para confrontá-lo.
Não consegue, né?
Está preso.
José está deitado de barriga para cima e levitando.
- Logo eu e você seremos um só. Você está preso na minha técnica de fusão.
O pardal gigante medita ao lado de José. Uma falha do sistema, sem perceber José dormiu após apanhar do mendigo. O feitiço virou contra José.
- Essa técnica é minha! Me solte, me largue e me solte!
- Hahahahaha.
José olha ao longe. O mendigo come um pedaço de pão enquanto olha nos seus olhos.
A vingança é um prato que se serve frio.
Era bem o que José precisava.
Um prato sempre cai bem para um estômago vazio.
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