Capítulo 4 - Plano Fantástico
- Loris Reggiani

- 2 de jun. de 2020
- 5 min de leitura

- Eu lembro que… - uma voz grossa, falha e trêmula ocupa o silêncio lentamente - Quando eu te vi… Você não me viu, mas eu continuei te vendo.
Determinante e implacável... as pausas entre as palavras são só um brinde do silêncio.
A brisa suave do mar percorre o rosto de José enquanto ele observa o horizonte em uma praia vazia. É fim de tarde, ele está mais novo, com roupas leves e sem muito peso nas costas. Fita o mar e a areia como se tudo que existisse fosse apenas aquele momento. Camisa de botão aberta com estampa de folhas de bananeira, calça clara e em tecido leve. Pés descalços. Férias para o ciclo ininterrupto do tempo. Um dia sem bater o ponto. Ele sente o aroma do descanso. Um presidiário da rotina sem suas algemas.
- Nós dois nos conhecemos… Você se lembra a primeira vez que nos conhecemos?
A voz calma circunda os seus ouvidos.
José respira o mar profundo, sente a areia no rosto… Mas também sente as calças ficando mais largas a camisa sendo retirada de seu corpo… Um corpo que encolhe enquanto as roupas ficam gigantes. A paz vira dúvida. Pensamentos que ele não pode alcançar.
Tudo está escuro. Não enxerga o chão. Não enxerga à frente. Não vê nada.
Sente uma vontade forte de chorar.
Ele voltou a ser criança, mas as vestes continuaram de adulto.
- Nós nos conhecemos… Na escola…
A escuridão à sua volta mescla-se com a cena do pátio no ensino fundamental. O ex-bancário sai das roupas gigantes e vê que está usando uniforme. Crianças correm para todos os lados, gritos e risadas. Outras passam com cachorro-quente pequenos sacos de pipoca. José procura a voz, entre tantas outras vozes.
- Você me chamava de...
Percebe que tem alguém atrás dele. Suas pupilas diminuem.
- Pardalzinho.
Rapidamente vira-se. Ali está a voz.
Ele vê o Pardal gigante ainda quando criança, sua penugem mais clara e apoiado de costas sobre a mureta, ele ria sem graça. Calça jeans e tênis Rainha.
O peito de José treme.
Cuidado. Fique esperto.
Treme mais ainda.
- E eu me aproximei de você… - o pardal caminha em direção a José.
Poltronas vermelhas e vazias caem em volta deles enquanto uma luz passa sobre suas cabeças. Barulho de coisas se encaixando. Não são os pensamentos de José. Pipocas caem sobre os dois, em um momento muito romântico com cheiro de cinema. O Pardal, mais jovem, segura as mãos de José, também jovem no meio do cinema.
Clássico.
- Segurei a sua mão e perguntei se seria para sempre… e você disse que…
- Vá com calma que eu sou de família. - a boca de José fala sem ele se controlar.
Como em muitos momentos de sua vida, ali está José… um expectador de acontecimentos. Sem perceber, a sala de cinema ficou cheia.
Alguém os observa, seus olhos brilham na escuridão. Todos sorriem, mas alguém entre as poltronas parece não sorrir. Um brilho escuro.
Ainda sem entender José olha para a tela do cinema. Um carro de polícia vem correndo com muita velocidade, freia bruscamente e derrapa na frente da câmera, parando bem próximo a ela… A porta abre e sai um pássaro com roupa de policial. Era o pardal um pouco mais velho, ele se aproxima da imagem. Que perspicaz!
- Eu que sempre tive liberdade e cacei… me vi aprisionado no seu amor.
José puxa as mãos, o Pardal segura firme.
- O que está acontecendo?
José fala, mas sua voz não sai.
Você adormeceu e o ritual de mitose está próximo do fim.
Logo, você e o pardal serão um só.
O Pardal segura firme as mãos de José e tudo gira muito rápido.
Aquele ambiente de cinema muda e vira um ambiente de… Casamento?!
O Pardal está gigante, à sua frente ajoelhado, segurando suas mãos. com seu terno azul marinho, fazendo votos de amor. Definitivamente, é um casamento.
José está vestido de noiva, com uma longa cauda no vestido que cobre vários passarinhos a brincar.
O tom é de um verde pueril que parece ter saído de um desenho encantado. Canto de passarinhos, borboletas brilhantes, um rico correndo por perto e eles, no topo de um monte. Uma cerimônia digna de celebração.
José está emocionado. Sente que foi o que sonhou a vida toda. Embora esse sonho não fizesse parte de seus planos. Embora esse sentimento não fizesse parte de seu ser. Algo está errado, mas algo também está certo.
Um padre andorinha limpa uma lágrima do canto de seus olhos com suas asas.
Pardais e pássaros por todos os lados.
José no altar.
Você está preso no mundo dos pardais.
Mas que comentário avassalador.
- Respeite o meu dia - José diz para si mesmo enquanto uma lágrima escorre de seus olhos.
- Ah que lindo… Ele se emocionou! - Ouve-se uma voz entre os convidados.
José procura aflito. Uma corda. Uma arma. Uma saída.
Uma parte quer fugir.
Outra quer se entregar.
- O que eu faço?
Novamente a voz de José não sai.
Espere um momento.
- Não dá para esperar o cara vai casar comigo! - fumaça de treta interna.
Depois separa.
- Não posso. Casamento é sagrado. Nós seremos uma família.
Me deixe pensar.
- Eu quero ter filhos - careca, mas convincente.
Acorde idiota. Você está na ilusão.
- Nem todo casamento é uma ilusão - Pardal diz e olha para o céu - O nosso é amor verdadeiro.
Uma lágrima escorre dos olhos dele e cai, com uma das asas ele colhe a lágrima.
Ela brilha e ilumina todos à sua volta. O céu muda de um tom ciano para amarelo claro. A lágrima se torna uma aliança, ele esfrega ela com as asas e a aliança se torna duas.
Além de romântico ele é mágico.
- Meu benzinho… Com esse símbolo matrimonial… Nós nos tornaremos um só… - o Pardal ajeita a aliança e posiciona para inseri-la no dedo de José.
Você vai ter que dar um tempo.
- Aqui? Na frente de todo mundo? - José pergunta assustado, apenas a voz em sua cabeça pode ouvi-lo - Essas coisas precisam ser conversadas antes, agora não dá.
Não é disso que estou falando, idiota.
A aliança se aproxima do dedo de José.
Quando inseri-la, o ritual estará completo.
É o fim.
Rápido!
Por puro choque e reflexo, sem pensar, as mãos de José escapam das asas do Pardal e ele tenta enfiar as mãos no bolso. Seu refúgio em momentos de insegurança. Não tem bolsos. Continua perdido. Sempre perdido. Mas suas mãos encontram algo pendurado entre o vestido, um relógio antigo.
- O que que é isso… - José levanta o relógio para olhar, seus ponteiros estão parados, como todos ao seu redor, perplexos - Esqueceram um relógio de velho no meu vestido. Isso não se faz com uma noiva em pleno dia do seu casamento!
José olha enfurecido, procurando alguém para culpar e arremessar o relógio. Damas de honra, cadê as damas? Porém, todos estão parados e congelados. As nuvens pararam, os passarinhos congelaram, o Pardal não reage mais. Nem o som do riacho ao lado pode se ouvir.
Realmente, ele congelou o tempo.
Não sabe como, mas congelou o tempo.
- Bem na hora, heim?! - Um tom de sarcasmo e uma escuridão começam a cobrir o chão. Um cheiro de quarto fechado. Um barulho de portas rangendo ocupam o ambiente. Ouve-se puns.
- Desculpe, você me assustou - José fala, mas não sabe com quem fala.
Olha para trás, assustado. Um capuz sem rosto, uma mão tremendo, um cajado e um chinelo desgastado. A morte sem forma e sem avisar, chega como costuma ser. Sem aviso e sem mensagem. E dessa vez, atrasada.
- Agora... devolva o meu relógio, por favor.











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